terça-feira, 10 de janeiro de 2012

Tudo é possível


             Qual a relação entre (1) a personagem Alice, do romance Alice No País das Maravilhas do autor britânico Lewis Carroll (publicado em 1865); (2) o protagonista Gregory House da série estadunidense de autoria do diretor David Shore, House (que estreou em 2004 pela FOX); e (3) a obra “Filosofia da Ciência”, do pensador brasileiro Rubem Alves (publicada originalmente em 1981)? E ainda, como esses elementos aparentemente distintos (de séculos diferentes, inclusive) se relacionam com a nova abordagem deste blog? As respostas virão nos próximos parágrafos...

           Confesso que ainda não tive a oportunidade de ler a obra de Caroll (título original: Alice's Adventures in Wonderland), mas conheci a história através do filme Alice in Wonderland (Alice no País das Maravilhas), lançado em 2010 com direção de Tim Burton e protagonizado por Mia Wasikowska (como Alice) e Johnny Depp (como o Chapeleiro Maluco). A despeito do fato do longa ser a quinta maior bilheteria da história do cinema e ter recebido diversos prêmios (inclusive dois Oscar), o que nos interessa aqui é o enredo e o aspecto simbólico da narrativa. Vamos a um breve resumo da história (me limitarei aos acontecimentos relatados no filme).

           Uma garota de seis anos de idade, Alice Kingsley, relata ao pai, Charles, uma visão que teve: a menina se vê caindo em um quase interminável buraco escuro, e chega a um lugar cheio de criaturas mágicas, antropomórficas. Ao perguntar ao pai se é louca, a jovem ouve, em tom de ironia, que sim, mas que todas as melhores pessoas o são. Charles Kingsley diz à filha que se trata apenas de um sonho. A influência paterna na formação da personalidade de nossa protagonista é fundamental para que se compreenda o ponto a que quero chegar.

         A narrativa é retomada treze anos depois, com Charles já morto e Alice prestes a receber um pedido de casamento, num noivado arranjado pelas famílias. A jovem se depara com os ritos sociais da época (creio que fim do século XIX, portanto, coincidindo com a data da publicação do livro), e não se sente parte daquilo. Quando a mãe percebe que Alice está sem espartilho e sem meias a repreende, dizendo que ela não está vestida adequadamente. “Quem diz o que é apropriado?”, questiona a garota. Sentindo-se pressionada pela situação (se aceita ou não o pedido de casamento?), a heroína foge, perseguindo um coelho vestido com um colete, que só ela conseguia enxergar.

          O coelho leva Alice à Wonderland, o País das Maravilhas. Chegando lá ela descobre que tem uma missão: matar um monstro chamado Jabberwocky e libertar o mundo subterrâneo do domínio despótico da Rainha Vermelha. Após muitas aventuras, a garota cumpre seu fado e volta à Londres para viver sua vida normal. Faz duras críticas às pessoas presentes em sua festa de noivado, nega o pedido de casamento e decide seguir os passos do pai, expandindo os negócios da família, chegando a comercializar com a China.

         Filha de um homem que era taxado de louco, mas que dizia que “a única forma de chegar ao impossível é acreditar que é possível” (fala do filme), Alice cresceu recorrendo sempre à imaginação. Enquanto dançava na festa de noivado, a jovem começa a rir e diz: “tive uma visão súbita: todas as damas de calças e os cavaleiros de vestido”. Creio não ser necessária uma prova maior do espírito contestador da protagonista. Observando pássaros no céu, Alice diz: “pensava em como seria voar”. Quando o pretenso futuro marido a pergunta o porquê de perder tempo pensando em coisas impossíveis ela responde: “e por que não?”. Alice usou a imaginação para criar um mundo seu, no qual ela era a heroína que garantia a paz, a justiça e a felicidade. No mundo real, utilizou também sua mente fértil para, como seu pai, levar suas ideias através dos oceanos. É a força criativa da imaginação o argumento escondido por entre as linhas da narrativa construída por Lewis Caroll e adaptada por Tim Burton.

      Agora vamos ao Dr. House. O médico interpretado pelo premiado ator Hugh Laurie é famoso pela sua notável inteligência, perspicácia e pela forma peculiar como encara a vida (alguns taxariam de misantropia, mas não vou tão longe). A série se passa, quase que em sua totalidade, dentro do hospital onde House trabalha, solucionando enigmas extremamente complexos ao lado de sua equipe. Não discutirei aqui em profundidade a personalidade do protagonista, pois fugiria do foco do texto (apesar de ser um tema que merece uma boa análise). O que interessa é como ele, enquanto cientista, se porta frente aos quebra-cabeças do cotidiano, e como isso tem a ver com argumento percebido em “Alice no País das Maravilhas”.

          Estou revendo a série desde o princípio. Coincidentemente, após refletir sobre o filme de Tim Burton, assisti ao primeiro episódio da segunda temporada, e me deparei com a seguinte fala do Dr. House: “coisas que não se encaixam me interessam", completado por “médicos adoram anomalias”. Se seguirmos o raciocínio metódico da ciência, em sua forma mais simples, veremos que faz perfeito sentido as afirmações do médico.

       O desenvolvimento de um pensamento científico passa necessariamente por quatro etapas básicas: (1) a identificação clara do problema; (2) a visualização mental de um modelo ideal sem defeitos; (3) a construção de hipóteses que expliquem o problema; e (4) o teste de tais hipóteses. Complicou? Vamos simplificar. De acordo com Rubem Alves, em seu livro Filosofia da Ciência, um problema só encarado como tal porque há alguma falha num modelo ideal. É isso que, segundo o autor, induz o pensamento. “Quando não há problemas não pensamos, só usufruímos”, diz ele.

     Esses modelos ideais só podem existir na imaginação do ser humano. Como constataríamos a seca no semiárido nordestino como um problema se não imaginássemos que o ideal seria que não faltasse água para ninguém? É isso que House faz em todos os episódios da série norte-americana. E o que qualquer médico também faz. Para identificar o que está errado com alguém que está doente, é preciso, antes, saber como seu corpo deveria funcionar normalmente. A partir daí imagina-se o que pode estar afetando o funcionamento pleno do organismo, testa-se na prática se as hipóteses estão corretas, para então poder se perseguir a solução.

           Muitas vezes já me disseram: “mas você não acha que o ideal de uma sociedade sem governo e sem leis, na qual todos seriam iguais é uma utopia?”. No sentido estrito da palavra sim. O comunismo é um modelo imaginário sem comprovação concreta de viabilidade. Mas minha função como artista não é a de imaginar o impossível e materializá-lo? Como cientista não devo, como Dr. House, ser fascinado pelo que “não se encaixa”, como a desigualdade social? Como ser humano não tenho o dever de, como Alice, imaginar que outro mundo é possível? Como diria Freud, em se tratando da mente humana, tudo é possível.

         Podem ainda argumentar que estou apenas sonhando. Mas concordo com Rubem Alves e com o personagem Charles Kingsley: imaginar o impossível é o primeiro passo para torná-lo possível. Alice no País das Maravilhas, House e Filosofia da Ciência serviram para revigorar minha convicção revolucionária. Para construir um mundo melhor e mais justo é necessário acreditar que isso é possível, mesmo que tudo indique que o objetivo está ainda muito distante. Perguntar se vivemos num modelo ideal é a chave para não passar em branco pelo mundo.




Links:
Filme: Alice no País das Maravilhas
Livro: Alice no País das Maravilhas
Série: House
Livro: Filosofia da Ciência

quarta-feira, 4 de janeiro de 2012

Almanaque...



Começa 2012. A virada de ano vem sempre carregada de simbolismo. Aproveita-se que o último dígito da data é outro para que se busquem mudanças reais nas vidas de cada um. A partir desse espírito, e de outras razões que enumerarei mais à frente, este blog começa o ano novo com novo nome, nova proposta e novas ideias.

"Almanaque": segundo o dicionário Michaelis, "livro ou folheto que, além do calendário do ano, contém indicações úteis, trechos literários, poesias, anedotas." Pretendo, em 2012, conseguir publicações com uma periodicidade maior do que no ano que encerrou-se. Pretendo, também, que os tradicionais artigos de opinião passem a ser menos frequentes, dando lugar à crônicas mais extensas (terreno no qual me aventuro pela primeira vez). Isso sem que se perca minha dedicação à poesia e meu olhar científico sobre os problemas cotidianos e essenciais.

Mas a inspiração para o novo título do blog não veio do dicionário. Como grande fã, fui buscar em Chico Buarque a tradução para a inquietação que me mantém vivo na guerrilha ideológica digital. A canção do álbum homônimo de 1981 é um questionamento à essência das coisas. Coisas cotidianas ou profundas, sentimentais ou políticas, tanto faz. O importante é perguntar. "Me responde por favor / Por que que tudo começou", diz a letra. E é questionando que este blog pretende se manter ao longo do novo ano.

Essa é a segunda razão para as mudanças que faço no blog: o dever de causar a dúvida. Na última segunda-feira (2) tive o prazer de viver uma noite muito inusitada. Saí para beber com alguns amigos, e tivemos a honra de conhecer algumas pessoas que nos propiciaram uma conversa extremamente produtiva e interessante. Tanto que ficamos na rua até às 6h da manhã. Nesse debate chegamos a um consenso: tanto a ciência como a arte não têm, nem podem ter respostas. São as perguntas que movem o mundo. "Quando achamos que conhecemos a nós mesmo, nos aniquilamos como pessoa", disse um dos novos amigos que fiz naquela noite. Concordamos então com Maiakóvski, quando este grande poeta soviético afirmava que "a arte não é um espelho que reflete o mundo, e sim, um martelo para forjá-lo". Concordamos, também, com o geógrafo Milton Santos quando afirmou que "ser intelectual é exercer diariamente rebeldia contra conceitos assentados, tornados respeitáveis, mas falsos. É, também, aceitar o papel de criador e propagador do desassossego e o papel de criador do escândalo, se necessário".

É nesse almanaque que o leitor terá acesso aos pensamentos e inquietações desse projeto de cientista social e projeto de poeta que tem amor ao Brasil e à cultura brasileira e um desejo incontrolável de mudança! Até o próximo texto...